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Foto do escritorLuiz Ottoni

Dom Pedro I mandou matar um jornalista? Uma reflexão sobre a liberdade de expressão

Somos frutos de uma visão liberal do mundo. Não necessariamente no sentido econômico, mas no sentido político. A democracia liberal não surgiu do nada e nem existe por alguma força da natureza, ela é como uma flor, só não murchará, se quem gosta dela tomar a atitude de cuidar.

A imprensa é de fato o quarto poder e hoje isso pode ser ampliado. Porque não é mais necessário um grande estúdio de televisão ou máquinas de impressão de jornal para exercer o papel de imprensa.


Não são poucas as pessoas que usando redes sociais criticam e analisam o Estado, muitos alcançando mais audiência do que a mídia tradicional. Isso é claro que incomodou muita gente.


Em 2019, o ministro Alexandre de Moraes mandou a Revista Crusoé, pertencente ao Antagonista, retirar do ar uma matéria crítica ao ministro Dias Toffoli. (fonte: G1). De lá para cá, essas decisões contra redes sociais e canais de notícias só aumentaram.


O Brasil vive um ambiente onde alguns assuntos são praticamente banidos e comunicadores sentem medo de falar sobre. É um cenário de censura, mas que não tem nada de novo na história do país.


A verdade é que os princípios políticos liberais sempre tiveram muita dificuldade de se enraizarem no Brasil. Sendo a liberdade de expressão um deles.


A relação promíscua entre sociedade e Estado, já se manifestou na formação do país quando Caminha pede um favor ao rei para ajudar seu genro, o que hoje chamamos de nepotismo:


E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, manda vir da ilha de São Tomé a Jorge Osório, meu Genro – O que d’Ela receberei em muita mercê.” (Caminha, Maio de 1500)


Assim a sociedade brasileira foi se construindo. Uma sociedade em que o Estado é o provedor, o vigia e o regulador de tudo o que acontece. Nesse sentido, não seria uma ideia inteligente desafiá-lo, mas há quem teve essa ousadia.


Foi o caso do jornalista Líbero Badaró que no início do século XIX escrevia críticas duras ao governo e ao reinado de Dom Pedro I. Ele era um italiano que veio para o Brasil onde fundou um jornal chamado O Observador Constitucional. Veja alguns trechos do jornal publicados no ano de 1830:

Transcrição: “Qual seria o dever dos brasileiros e de todos que vivem no Brasil, se houvesse quem a força aberta quisesse atentar às garantias que a Constituição lhes outorga? Defendê-las ou morrer. A Constituição é a confiada no Brasil à guarda dos cidadãos, de todos os que ela protege. E ai daquele que quisesse tocar-lhe, porque todos seriam soldados nesta ocasião, e ninguém duvidaria expor-se com coragem as balas porque a morte em própria defesa não é tão dura como a morte dela pelo carrasco.”

Perceba que o jornalista claramente cria uma situação hipotética de alguém que fosse contra a Constituição, mas em outros trechos ele acusa diretamente o chamado “Governo da Boa Vista”, ou seja, o poder que ocupa o Palácio da Boa Vista de ferirem a Constituição de 1824 e o direito do povo.


Assim sendo, a interpretação fica clara, o povo deve se manter vigilante e estar pronto para reagir aos desmandos dos governantes ligados ao reinado de Dom Pedro I. Isso irritou profundamente a classe política.


O Dr. Cândido Ladislau Japiassú, que era ouvidor do Estado de São Paulo, chegou a processar um jornal por “abuso da liberdade de expressão”. Isso não nos parece tão estranho nos dias de hoje…


Voltemos à História, porque essa tensão entre governo e Estado chegou ao nível insustentável.


Transcrição: “O Império não deve ser governado pelas Gazetas [aqui se referindo aos jornais]. É verdade: mas os que governam devem governar segundo quer a opinião pública, aliás, a Nação não há de querer ser governada por eles, porque governam mal. É por todos sabido no Brasil que as folhas são os órgãos da opinião da maioria dos governados, e que nos países bem regidos é esta maioria que dirige a marcha dos que são ao leme dos negócios públicos.”

Neste trecho ele responde às críticas do governo que acusavam a imprensa de querer governar o país. Há momentos, onde o jornal de Líbero Badaró se posiciona ainda mais agressivamente contra o governo.

Transcrição: “O Governo da Boa-Vista [refere-se ao Palácio da Boa-Vista] tem-nos procurado por todos os modos, e nós sempre na órbita da Lei. Quando com mais energia esse governo nos está traindo, então é que por eles somos insultados, então é que aparecem em todas as províncias planos republicanos, então é que o cofre dos desgraçados (o das mercês) se exaure, e esse governo estúpido e traidor toca com todo o fôlego o clarim da rebelião”.

Na noite do dia 20 de novembro de 1830, Líbero Badaró voltava para casa em um dia de trabalho quando foi surpreendido por um assassino que o baleou com um revólver. O jornalista morreu no dia seguinte.


A sua morte revoltou a população e ele se tornou um mártir na defesa da liberdade de expressão e a sua morte colocou fogo na luta contra o governo. Afinal, a opinião pública interpretou como uma execução contratada por membros do Estado.


O principal suspeito era Dr.Cândido Ladislau Japiassú que teria agido com a proteção de Dom Pedro I. Nenhuma dessas hipóteses foram provadas pela polícia, mas apenas a suspeita foi o suficiente para fortalecer a oposição a Dom Pedro I que abdicou do trono no ano seguinte, mas esse será assunto para o próximo artigo.


Veja como o mesmo jornal anunciou a morte de seu fundador:

Transcrição: Toda a Cidade de São Paulo ainda está enlutada por causa da morte do constante e corajoso defensor da Liberdade, o objeto de todas as conversações é o descaramento do malfeitor, unido à atrocidade. A indignação pintada no semblante de todos reclama a punição do horrendo atentado contra a vida do estimado Badaró; o traidor fermentou por dilatado tempo o crime, e a indignidade deste revoltou até os que em outras ocasiões por causas graves, mas não tanto, se conservavam em uma cesta espécie de indiferença. E como acontecer doutra sorte? Se um verdadeiro amigo da Pátria, que se havia votado a sua defesa já não existe?”

O jornal também noticiou que em seu leito de morte, Badaró havia dito:

Transcrição: quando expirou; por baixo do quadro estavam as palavras, que proferiu pouco antes de morrer, às quais nós mesmos ouvimos: 'Morre um Liberal, mas não morre a Liberdade'”.

Não é fácil dizer se essas frases atribuídas a pessoas no leito de morte são verdadeiras ou não, mas o fato é que ela entrou para a história. A morte de Badaró estremeceu o cenário político da época e essa frase nos deixa uma lição atual.


Quantos liberais não morreram ou foram presos para defender a liberdade de expressão? Hoje é cada vez mais comum que ela seja relativizada e violada e qual seria nosso papel diante disso?


Somos frutos de uma visão liberal do mundo. Não necessariamente no sentido econômico, mas no sentido político. A democracia liberal não surgiu do nada e nem existe por alguma força da natureza, ela é como uma flor, só não murchará, se quem gosta dela tomar a atitude de cuidar.


Autor: Luiz Ottoni - Professor de História formado pela UFMG e TikToker.


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